Negociar os próprios direitos trabalhistas – o inacessível exercício de liberdade
O trabalhador no Brasil é livre e senhor de si. Como tal, ele pode negociar as regras que impactarão sua rotina, seus ganhos, suas condições de trabalho. Ele pode ajustar direitos, estabelecer deveres, aderir a normas diversas que regerão a sua vida.
Quem alega de fato , e muito claramente, é a nossa Constituição, a nossa CLT e o nosso STF.
A coisa, é bem verdade, precisou ser reforçada ao longo do tempo. Enquanto a Constituição Federal de 1988 sempre reconheceu a prevalência das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7°, incisos VI, XIII, XIV e XXVI), a octogenária CLT dizia que as relações contratuais poderiam ser objeto de livre estipulação entre as partes (art. 444).
A mesma CLT, talvez cansada de não ser ouvida quanto ao direito, passou a gritá-lo.
A mudança de tom ocorreu com a Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/17), a maior alteração legal nesse campo desde Getúlio Vargas. Impulsionada pelo motor da liberdade individual, a Reforma explicitou e detalhou – tediosamente, acrescento - o direito de negociação do trabalhador. Justamente por isso, aliás, a sua linha mestra recebeu o apelido de “negociado sobre o legislado”.
Por fim, a prevalência do negociado sobre a lei tem sido afirmada e reafirmada também pelo STF.
Em 2015 foi julgado o Tema 152, um dos precedentes mais importantes sobre o assunto. Nele, o STF reconheceu a força de lei das negociações coletivas e afirmou que a autonomia negocial é um dos melhores mecanismos outorgados aos trabalhadores para ajustarem com seu empregador os seus direitos. Durante o julgamento, o relator, Ministro Barroso, não deixou passar a oportunidade de censurar as costumeiras anulações de pactos coletivos pela Justiça do Trabalho, as quais, segundo o Ministro, não deveriam ser vistas com bons olhos.
Também a pandemia de COVID-19 se tornou oportunidade para que o STF reiterasse a tendência de chancela à prevalência do negociado sobre a lei. Lembremos que em 2020 foram implementadas alterações trabalhistas no mundo inteiro como reação à paralisação econômica causada pelo isolamento social. No Brasil em particular, a pandemia ocasionou uma desregulamentação drástica e criou precedentes constitucionais impactantes. Foi o caso, justamente, da prevalência dos acordos individuais sobre a lei, autorizada pela corte constitucional e amplamente utilizada para manter postos de trabalho com reduções de salário e jornada.
Já em junho de 2022, o STF fixou definitivamente a tese de que: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.” (Tema 1046)
Os tais “direitos absolutamente indisponíveis”, relembre-se, são aqueles já explicitados pela Constituição e repetidos pela CLT desde a Reforma Trabalhista (art. 611-B). A repetição enfadonha não impediu que se (re)estabelecesse a discussão sobre o que estaria inserido no limite do indisponível, sendo, portanto, inegociável. A rediscussão, por si só e para não perdermos o hábito, tem gerado alguma insegurança jurídica.
O que importa afirmar, contudo, é que já não há qualquer dúvida de que o STF escolheu o caminho da legalidade quanto à negociação de direitos pelo trabalhador.
Até mesmo no recente e polêmico julgamento do piso da enfermagem, quando o Supremo determinou a imediata implementação do patamar salarial fixado por lei, o fez apenas para o setor público. Ao setor privado, a mesma implementação ficou condicionada à negociação coletiva que, segundo determinou o STF, deveria prevalecer sobre a lei.
Então, repita-se: (1) nossa Constituição prevê a liberdade do trabalhador de negociar os seus próprios direitos; (2) a CLT detalhou os limites dessa liberdade até o ponto de não deixar dúvidas; e (3) o STF bateu o martelo sobre a questão inúmeras vezes.
Assunto encerrado, certo? Claro que não.
Ainda hoje não se exerce o respeito às negociações feitas entre trabalhador e empregador. Ainda hoje há inúmeras ações, coletivas ou individuais, que buscam anulação de cláusulas validamente negociadas. E ainda hoje há notícias frequentes de invalidação de negociações coletivas pela Justiça do Trabalho.
Como explicar isso? Por que o caminho até o exercício pleno da liberdade pelo trabalhador parece alongar-se continuamente, independentemente do que seja feito para encurtá-lo?
Só evoluiremos nessa seara quando conseguirmos responder a essas questões, identificando os motores dessa resistência e seus verdadeiros interesses. A nossa histórica aversão ao valor da liberdade pode não ser a única culpada.
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